Casa d'Aldeia é a casa original, a mais antiga habitação de minha cidade natal Cachoeira do Sul. Habitação, que, igual a cidade, apesar de tantos golpes de vento e borrascas sazonais teima em manter ao menos duas paredes de pé. Casa d'Aldeia é a minha casa. Seja bem vindo a ela!
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22 de mar. de 2009

MEUS DOIS POETAS ASSINALADOS












(...) madrugada fria já, mal e mal outono. Se levanta do chão um vapor, névoa espessa fazendo cintilar ainda mais os raios de sol incidindo oblíquos sobre todo lugar.
Os galos cantam para acordar o sol, e eu me recordo do poema de Ferreira Gullar: Galo Galo.
Galo galo/ de alarmante crista, guerreiro,/ medieval/ de córneo bico e/ esporões, armado/ contra a morte,/ passeia//
A madruga teima avançar dia adentro como um rio avança milhas e milhas na salina do mar. A madrugada insiste prosseguir fulgindo, em desacordo com minha preguiça, e essa também avançará.
Durante o dia, minha pachorra tão engenhosa vai imaginar desculpas pouco convincentes para tentar me fazer adiar tarefas cotidianas. Deveres comezinhos como lavar o rosto, tomar banho, escovar os dentes. Rotinas prosaicas, maçantes. Rotinas responsáveis pelo tédio & renitência, a birra do poeta Fernando Pessoa pelo hábito de as cumprir sem pensar. E, finalmente a confissão de sua rebeldia contra elas, fazendo-o deixar de lado o banho e outras rotinas da higiene pessoal. Eu não sou Fernando Pessoa, embora haja dele um pouco naquilo sentido por toda humanidade, e, bastasse para isso comprovar ser o poeta antes de tudo o meticuloso ser urdindo a verdade de tudo a sua volta. Encampando a realidade. Malhando as víceras da música na forja fria das palavras. O poeta é cirandeiro, griot, contador de causos, cordel, repente, o poeta não compra nem vende, o poeta entrega, dá de seu sustento sem preocupar-se com o amanhã a lhe encontrar anêmico, tísico - hemoptise verbal & substantivada, concreta.
O galo tal e qual o poeta se arma contra a morte... Eu não sou Ferreira Gullar, não sou Fernando Pessoa. Meu nariz não cheira a mistura olorosa das quitandas e armazéns nos bairros de São Luís. Minha visão da janela não se abre a uma tabacaria, nunca fugi para fora da possibilidade de um soco. O mundo - mesmo em face da morte, não parece lugar tão ameaçador a ponto d'eu me tornar neurótico e daí genial.
Arrasto minha preguiça de domingo bocejando, sabedor: Não haverá pregão nem feira. Os armazéns permanecerão abertos só até o meio dia, e, o da esquina vende frango assado.
Definitivamente não sou Fernando Pessoa. Tampouco uma encarnação sua abastardada num mazombo tez oliva, em cujas artérias corre um sexto ou mais de sangue cafre. De sangue hamita, baralhado ao comum da terra, desse gentio a quem tomaram alegrias, bosques, rios, vales, serranias, altivez, esperanças e saudades. Certamente não guardo menor parentesco para com Fernando Pessoa, por mais improvável e tortuoso traçado genealógico pudesse ter havido desde a cepa original do poeta até algum meu contraparente. O mesmo não digo de José Ribamar Ferreira.
Ferreira Gullar e eu comungamos sob esse sol ora inclinado, a pachorra cálida ameraba e a expedição da mouraria.
Porém há diferenças entre ele e eu; sou homem bruto para as sutilezas. Meus olhos demasiadamente claros, límpidos não se prestam a mistérios ou lirismos desbragados. Não distinguem dentre tons de cinza as várias nuanças, requintes, texturas: esfuminho, sombra e opacidade.
E há semelhanças também: Somos homens simples tal o nascer do dia, singelo efeito da mecãnica celeste. Ousamos sonhar a liberdade. E essa candeia dependurada agora sobre o mundo onde adormeço será sempre nossa certeza de honesta claridade.

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