Casa d'Aldeia é a casa original, a mais antiga habitação de minha cidade natal Cachoeira do Sul. Habitação, que, igual a cidade, apesar de tantos golpes de vento e borrascas sazonais teima em manter ao menos duas paredes de pé. Casa d'Aldeia é a minha casa. Seja bem vindo a ela!
Portuguese English French German Spain Italian Dutch Russian Japanese Korean Arabic Chinese Simplified

twitter orkut facebook digg favorites mais

12 de abr. de 2019

MEMÓRIAS DE MINHA MÃE


MEMÓRIAS DE MINHA MÃE

Minha mãe Marta, certo dia me contou:
“ - Foi depois da guerra, em 1947.  Nos fundos do asilo, era o nosso colégio. Dona Rosinha, a Carmem e a Sibila eram as professoras. Havia minha colega Nair, o Ivo e a Leda... Mas, nós não gostávamos da aula, queríamos era brincar com uma velhinha destrambelhada que tocava gaitinha de botão e cantava. A Periquita, assim a chamávamos. Tinham construído um balanço pra ela e nós dávamos pedaços de bolo e balas pra que ela cantasse versos pra nós. Periquita morava no asilo... Às vezes ela estava triste, chorava, não contava pra nós o porquê.”
Minha mãe também estudou em uma escola municipal que funcionava na casa que serve de base para os fiscais municipais de trânsito junto à Praça Borges de Medeiros na Rua Júlio de Castilhos. A chamada Praça da Caixa d’Água. Pois ali frequentavam o terceiro ou quarto colegial ela e seus colegas Nair e Ivo Schmidt. Coisa é que a Praça Borges de Medeiros abrigava já na época um edifício de um andar construído em 1924 em estilo neoclássico. Essa construção, seguindo padrões arquitetônicos franceses foi erigida para abrigar o parque de bombas centrífugas responsáveis pela pressão da água bombeada desde a parte baixa da cidade, onde se localiza a estação de tratamento, até a parte alta da cidade. Pois. entre os pilares dessa construção que possui um terraço verde, minha mãe  sua inseparável  amiga Nair e seu amiguinho Ivo se escondiam. O intuito deles não era outro que não o de espiar sua professora dona Carmem foder em pé com um engenheiro francês que periodicamente vinha verificar os reparos e melhoramentos nas bombas instaladas. Aproveitando pra desentupir o encanamento da professorinha.
Eis que no verão de 1948 um grande circo ocupou o espaço  então vasto da praça Borges de Medeiros. Lá se instalou com suas lonas coloridas, bandeirolas, flâmulas & bandeiras. Havia jaulas de animais exóticos. Macacos chimpanzés, leões, tigres, etc. Um enorme elefante asiático permanecia amarrado pelo pé a uma corrente, próximo a lona principal... Minha mãe e seus amigos inseparáveis no ímpeto dos dez anos todo dia iam olhar os bichos, o circo, e se compadeciam de ver os animais presos. Naturalistas precoces e involuntários, adeptos – mesmo sem o saber da causa ecológica, resolveram certa tarde, depois da aula, abrir as jaulas e dar fuga aos animais. Assim fizeram... E por primeira vez o pandemônio se instalou pelas ruas da diminuta cidade. Nossos heróis, entre medrados e satisfeitos evadiram-se sem um único arranhão, enquanto bombeiros, policiais, funcionários do circo e os munícipes mais corajosos tratavam de recapturar os recém-libertos. Se conseguiram? Até ontem ninguém sabia dizer ao certo.

10 de abr. de 2019

ALTÍSSIMA AUTOESTIMA
Ilustração Original - Alexandre Florez

O Fantasma de Antoninho









[...] a velha beata Candoca (dona Enedina Pureza Rodrigues) dava dinheiro, às escondidas do marido, ao filho Antoninho. Antoninho era um andrajo. Esmolambado, batido, surrado... Curvado sob um peso invisível aquela criatura fora escorraçada pelo pai Antônio, o Catimbau. Dono de armazém, padrinho de minha mãe.

Vez ou outra, Antoninho, aquela figura melíflua vinha de Porto Alegre. Amarfanhado, encolhido, as mãos trêmulas, soturno, medrado. Rastejante na sua condição de homem humilhado pela ignorância gnóstica cristã contra o homossexual. Assim se apresentava Antoninho, vergado sob seu fardo, a fronte voltada para o chão.

Eram os anos setenta. Tenho lembrança da figura alta, ossuda, de cabelos e olhos claros e ralo cavanhaque. Recordo seus trajes um ou dois números maiores, desconjunto, e seus tiques neurastênicos: A voz hesitante num fio, cacofônica. O olhar irrequieto e miúdo. Temeroso como o de um cão enjeitado e faminto. Suportando quase indiferente já um passa fora atrás do outro. Um famélico cão cujo orgulho dissipou-se no éter porque entre os sem eira nem beira não há nenhuma esperança. Nem sobeja a menor das alegrias a não ser a cachaça.  Vivem de restos. Do despejo alheio. Das sobras, de remendos, de memórias que pertencem a outros, alheios a partilhar qualquer coisa consigo...

Na dureza altiva e límpida dos meus sete anos pouco se me importava à sorte de Antoninho. Seus dissabores. Nos meus heroicos sete anos queria saber das goiabas, bergamotas, nêsperas e maçãs do grande pomar na casa do Catimbau... Porém, hoje, nesta manhã chovediça e fria, devoto um pensamento a esse fantasma que o tempo consumiu. Sem, no entanto, fazer com que eu o esquecesse. E, pelo cristalino dos olhos de uma criança, de um menino de sete anos, o tímido Antoninho vem espiar mais uma vez este mundo. Talvez agora esteja ele menos assustado; quem sabe? Talvez agora finalmente esteja em paz!