Casa d'Aldeia é a casa original, a mais antiga habitação de minha cidade natal Cachoeira do Sul. Habitação, que, igual a cidade, apesar de tantos golpes de vento e borrascas sazonais teima em manter ao menos duas paredes de pé. Casa d'Aldeia é a minha casa. Seja bem vindo a ela!
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16 de mai. de 2011

Reestruturando a Batucada

...Trata-se isso de um drops kkkkk. Seja um drops, uma balinha desembrulhada e deixada ao sol para desmanchar-se em uma geléia. Mas, fato é que este opúsculo pouco didático se trata de um trecho do livro que ora finalizo sob o tema da tradição do Quicumbi. Folclore de origem afro sul rio-grandense presente em Cachoeira do Sul de fins do século XVIII até o início do século XX.
 
A transmigração do Quicumbi rumo ao estilo hoje referido genericamente como samba foi responsabilidade exclusiva dos músicos negros profissionais das bandas sinfônicas. Entusiastas dos ritmos de apelo exclusivamente popular: o maxixe, o lundu, o choro o tango, e a onipresente modinha muito estimados pelas camadas mais baixas da população. Onde também se ouviam e bailavam chamarritas e fandangos de marcada influência ibérica,  ritmos apreciados nos cabarés à margem do Jacuí onde tais músicos por necessidade e divertimento exerciam com muito maior liberdade sua profissão animando o ambiente nas noitadas de "função".

De uma maneira ou outra essas ocorrências pontuais - de músicos profissionais, que, fora do âmbito das bandas enveredavam pela informalidade da música popular, concorreram diretamente para que se avolumasse no seio do povo o desejo de retornar à folia das ruas. O retorno, à volta ao samba propriamente dita encerrou o propósito fundamental de reafirmar a identidade perdida mediante a vigência do preconceito e da segregação impostos também pela condição social dos indivíduos além de sua cor. Resistir ao achincalhe, expressar-se, dar vazão à todas as frustrações, extravasar na música, no canto e na dança a enorme demanda de alegria reprimida, foi passo decisivo para negros, brancos pobres e mestiços organizados suportarem a opressão de uma sociedade hostil a suas presenças. E, até hoje, indiferente à profundidade cultural, à riqueza milenar da cultura afro-rio-grandense. Cultura essa cujas manifestações folclóricas foram toleradas no tempo da escravidão como medida para suavizar a pressão a que eram submetidos os escravizados. Manobra de provado sucesso usada como válvula de escape. Alívio de tensões entre escravizados e senhores. Contudo, essa tradição popular espontânea que personificada nos Ternos de Promessa de Quicumbis, Entrudo, Bumba Meu Boi, Reisado, etc., era encorajada pela sociedade cachoeirense quando e como lhe convinha, em momento algum ao longo a história dessa comunidade foi completamente entendida ou aceita por ela. Justamente porque sua motivação calcada na sabedoria do povo (folk lore) sempre esteve adiante da razão presumida – única e simplesmente o divertimento, com que a sociedade cachoeirense (e centro rio-grandense) quis ou pôde enxergar essas manifestações. Sem a capacidade intelectual de reconhecer nelas o cabedal das tradições milenares gravado no inconsciente coletivo, na psique do povo. Atualmente o Quicumbi resiste, ainda que diluído sob a influência de vários ritmos e estilos do folclore musical afro-rio-grandense em localidades como Tavares, Mostardas e Osório - região litorânea do RS, e Rincão dos Negros (ou dos Panta), comunidade descendente de escravizados, no interior do município de Rio Pardo, região central do estado.

Quanto à estrutura rítmica atual dos Quicumbis originais, ela alterou-se através dos anos. Devido a fatores de ordem externa como a dinâmica do folclore, empréstimos feitos a outras tradições, e, sobretudo, a perda de elementos, esvaziamento cultural em consequência de desgaste sofrido ao longo do tempo.  A preservação do estilo do Quicumbi aos moldes de quando apareceu seria impossível. Acréscimos exóticos a instrumentação original composta apenas de instrumentos percussivos são anotados em Cachoeira já em 1907. Rabeca e gaita (acordeom) são presenças observadas no corpo instrumental. Posteriormente, Luciana Prass em seu trabalho de pesquisa etnomusical Tambores do Sul registra em áudio e vídeo os festejos de um Quicumbi já abastardado ocorrido na localidade de Rincão dos Negros, interior do município de Rio Pardo. Essa comunidade trata-se de um Mocambo formado por descendentes de escravizados fugidos. O Quicumbi registrado por Luciana apresentou em seu conjunto instrumental violão e gaita. Por consequência supomos que a execução do Quicumbi, naquela comunidade, ora imiscuído por ritmos e tradições estranhos a si seja muito diferente do que fora nos primórdios dessa tradição em Cachoeira e Rio Pardo. Distinto até dos festejos registrados por J.C. Paixão Côrtes na década de 1950 em Bom Retiro do Sul, Mostardas e na própria localidade de Rincão dos Panta em Rio Pardo nas décadas de  40 e 50.

Nota:

1 - Rincão dos Panta é nomenclatura emprestada da família Panta, a quem pertencem as terras desses antigos Mocambos, como é preferível classificar o reduto de descendentes de escravizados fugidos, que não se constituiu num acampamento guerreiro, termo etimologicamente adequado à palavra Quilombo.

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