Casa d'Aldeia é a casa original, a mais antiga habitação de minha cidade natal Cachoeira do Sul. Habitação, que, igual a cidade, apesar de tantos golpes de vento e borrascas sazonais teima em manter ao menos duas paredes de pé. Casa d'Aldeia é a minha casa. Seja bem vindo a ela!
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16 de set. de 2008

O Senhor dos Passos

Trecho extraído de meu livro (em processo de escrita); O Senhor dos Passos.


O que pode se a distância, senão um assombro dentro do coração das gentes? O ônibus em que Mirta viajava cumpria bom caminho sobre a estrada nova de asfalto. A modernidade contribuía para o conforto dos poucos viajantes. Suspensão a ar, perfeita ergometria dos assentos reclináveis, isolamento acústico e ar condicionado; Mirta olhava a paisagem móvel pela janela. Imaginava-se noutro tempo, noutro veículo, outro lugar... Sendo assim, com vistas a recriar de outra maneira aquele instante ela tomou um caderno de desenho novo, em branco. A lápis iniciou o esboço de um desenho a grafite, o que na verdade são tons de cinza, conforme a dureza da grafite e a pressão sobre o papel.
Qual motivo a levaria registrar a realidade que muitas vezes considerava maçante? Quem sabe? Imaginara o trem por nunca haver estado numa composição. Vira os comboios uma ou duas vezes. Achava bonitos os caminhos e ferro. Fossem quais fossem os caminhos, levavam a algum lugar. Ligavam-se a outros caminhos e esses iam a paragens diferentes, cada vez mais distante dali. Até que por vias indiretas, entre as retortas dos trilhos, tais caminhos se reconduzissem a sua cidade. Confluência para ela misteriosa do ir e vir das coisas. As estações. O vento. A chuva. A lua. As marés. O ciclo das mulheres. Tudo arrumado num círculo perfeito...
Rapidamente ela traçou um cenário. Serranias, promontórios. Montes precipitando-se em abismos formidáveis. Montanhas de granito cobertas pelo verdume das matas nativas. Abrindo-se esporadicamente em clareiras chãs onde predominavam jerivás e araucárias. A estrada que traçara não era a rodovia, na sua imaginação o caminho até Sant'Anna era os trilhos e o ônibus um vagão antigo tracionado por possante locomotiva a vapor. Trem que sacolejava na preguiça da pouca velocidade. Culpa de braços cansados pelo esforço de suprir a caldeira no seu constante apetite por carvão. Fome aparentemente insaciável. No interior do vagão decorado de acordo com o estilo neoclássico o cochilo dos poucos passageiros. Conhecidos entre si na maioria, familiares e pertencentes ao lugar. Trenzinho fagueiro, comboio pequeno e intrépido ziguezagueando sobre o caminho dos trilhos. Atalhando entre morros. Meio de nada. Despenhadeiros, confins. Cafundós...
Uma criança testemunhava apreensiva o descortinar da aurora. Todos, a sua exceção, se ocupavam dos relógios. Preocupados com a fuga das horas por um desvão qualquer. O menino não temia o trote veloz do tempo. Esboçava sim uma preguiça. Um sem pressa. A pachorra que não anseia nem antecipa nada tão perseguida por budistas e outras tantas vítimas da obsessão. O menino estava esperando. Mirta o observava pelo vão do assento a frente do seu. Lá estavam o menino e sua mãe. Mirta deslumbrava-se ora com a paisagem, ora com o exotismo das pessoas. Muito carregadas de não sei quantos cacarecos, traquitanas. Havia mesmo quem transportasse, com permissão da ferrovia, engradados de galinhas que ao romper da manhã desafinavam o cacarejo e sem cerimônia ejetavam tremendos ovos. Titicas a seguir, emporcalhando o assoalho carcomido do sonhado vagão. E o condutor nem aí. Para piorar a situação uma janela aberta a frente produzia ventarola de viés fazendo presente aos narizes de bordo o odor do galinheiro.
...Num repente, como se quase passando do ponto o veículo parou. Tinha chegado a seu destino. Sant'Anna. Pequena cidade rodeada por cercas vivas de parreirais. Terra generosa com as cepas do mosela. Esmerada no fabrico, tanto mais no consumo de seu próprio vinho.


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