Casa d'Aldeia é a casa original, a mais antiga habitação de minha cidade natal Cachoeira do Sul. Habitação, que, igual a cidade, apesar de tantos golpes de vento e borrascas sazonais teima em manter ao menos duas paredes de pé. Casa d'Aldeia é a minha casa. Seja bem vindo a ela!
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8 de out. de 2008

ENGODO


Azulejar-se. Cobrir-se de azul até não ser capaz de suportar o peso da cor impregnada na carne por encanto. Passe mágico responsável pela diferença nada sutil entre tecido vivo e a croma lúdica, fria, inanimada. Quase pura. Numa limpidez remetente à ordem imutável supostamente havida. Contrária às leis da natureza reformista.
Azulejar-se, trazendo o céu sobre si. Até sentir-se emparedado. Sepulto, imiscuído nele a não mais poder ter-se distinto do azul profundo e descansado.
Pasma de candura, com dedos diáfanos, a moça acariciava o cetim da cor impressa nas paredes do aposento, onde em coma profundo estava um paciente. Quem sabe? As coisas sucedidas a ele dois meses naquele estado. Talvez por ora repousasse inerme, tranquilo. Quiçá moribundo...
Com vagar ela tateava a superfície azulejada como se medisse a palmo, de alto a baixo inspecionando o ladrilho frio com o tato. Sentia cada friso, cada sulco e reentrância do rejunte. Nesse ato se demorava, pouco notando a presença do convalescente. O qual logo mais tarde trataria tal era seu ofício. Poderia mesmo, compassiva, por um momento estreitá-lo de encontro ao colo pálido. Apanágio dos sofredores.
Devaneando ela se demorava examinando ladrilho por ladrilho a monotonia hipnótica da parede azulejada no quarto do paciente.
Ele, entre aflito e resignado, sem poder ouvir, imóvel sobre o leito, sem poder enxergar, soube de maneira misteriosa o momento da aproximação da mulher. Por essa causa sofreu um espasmo. Percorreu-lhe um calafrio. Estremeceu. Imperceptivelmente agitou-se iniciando lentamente a longa subida desde o abismo fundo e escuro aonde sem forças se pusera abandonado pela esperança. Todavia, sem dor. Sem sentir fisicamente nada. Enquanto emergia teve medo. Um medo bobo é verdade, pois desde muito aguardava esse dia quando ela viria, só não adivinhara fosse tão cedo.
...Cumprindo um ritual encenado incontáveis vezes, a moça, deixando de lado a distração pueril, aproximou-se do leito. Emerso da penumbra confortante, aquele homem moço ainda, abriu os olhos. Inicialmente com cautela, mantendo-os semicerrados por conta do receio da luz. Nada além duma fresta, vão mínimo, o suficiente para enxergar um rosto feminino de linhas suaves. Emoldurado pela cascata negra de uma cabeleira bem penteada. Rosto jovem esboçando um sorriso redentor.
Sentindo-se confuso e indefeso ele se encolheu. Teve medo, quis chorar. Enfim abandonou-se, se dando por vencido. Aceitaria de bom grado o abraço frio daquele anjo, como julgava fosse. Sem pressa a moça graciosa admirou o convalescente, e por algum motivo imperscrutável acenou para ele. Gesto simples, inusitado. Assinalando o cumprimento dum capricho qualquer. Uma veneta complementada com um sorriso jovial e rápida piscadela antes de desaparecer do campo da sua visão.
Tão logo ela se foi instaurou-se um burburinho. Outros começaram entrar no aposento. O farfalhar das gentes, suas falas, risos, foi atirando-o de volta no caudal da vida. E ele, assombrado, sentiu insuflar-lhe o peito com tamanha força e intensidade como jamais experimentara antes.

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