Casa d'Aldeia é a casa original, a mais antiga habitação de minha cidade natal Cachoeira do Sul. Habitação, que, igual a cidade, apesar de tantos golpes de vento e borrascas sazonais teima em manter ao menos duas paredes de pé. Casa d'Aldeia é a minha casa. Seja bem vindo a ela!
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18 de fev. de 2009

CARTA PARA UM AMIGO

Esta carta foi endereçada a meu amigo Fernando Ramos em um dia quando eu precisava muito a companhia de um bom amigo. Infelizmente todos os meus bons amigos, incluindo Fernando, naquele dia estavam distantes.
Escrever-lhe uma carta foi a maneira encontrada de falar consigo e me sentir acompanhado da sua lembrança.
(...)Chove. Finalmente.
Antes havia pouca cidade, se tinha de caminhar algum tempo até a sanga caudalosa. Um córrego vivo de água límpida. Onde nas tardes de verão eu ia. Munido de samburá, rede feita de saco de batatas e o inseparável bodoque. Não um bodoque verdadeiro (artefato indígena) forquilha flexível para atirar pelotas de tabatinga. Um bodoque – estilingue, com sola de couro e borrachas de caminhão. A forquilha toda certinha, polida pelo manuseio, era feita de pereira. Forquilhas de goiabeira não prestam, goiabeira é uma madeira lenhosa, esfiapada, muito fraca.Laranjeira também é ruim. As boas forquilhas, simétricas e resistentes são confeccionadas de pereira (pêra d’água), de aroeira e camboim – este último difícil de trabalhar por sua dureza. Mas, de resistência inigualável.
Sol a pino, eu ia para a sanga com meus petrechos. Uma ou duas latas vazias de leite em pó pra por os lambaris, os pitus, as cobrinhas d’água pegos na rede. Seres valiosos nos tempos da minha infância. Itens apreciados para o escambo entre a molecada. Alguns "molecos" se davam à caça das "avis canora". Sabiás, coleiros, cravinas, cardeais e canários da terra. Eu não. Era muito fácil apresar esses bichos. Levava-se uma gaiola com um exemplar da espécie desejada como chamariz, e ao lado armava-se o alçapão ou a arapuca, pronto, bastava esperar. O bichinho preso cantava, outros da espécie se achegavam. Machos defendendo território; no caso do ocupante da gaiola ser macho. Quando era fêmea apareciam machos jovens solteiros no ímpeto de acasalar. Quando viam a isca no fundo do alçapão, um pouco de quirera bem fina ou miolo de pão, não resistiam petiscar e zás. Cadê emoção? Comigo não. Meu ramo era os pitus graúdos de garras afiadas, camarões de águia doce. Os lambaris listrados duas cores, as cobrinhas d’água de barriga amarela e um ou outro cascudo desentocado ao alcance da minha tarrafa certeira.
Tardezita, sol Brasil vermelho sangue, eu voltava com meu espólio. Gurizada reunida na esquina da Bento em frente ao velho plátano. A feira ia começar.
- Olha a cravina solteira, boa pra chocar. Quero vinte cinco figurinhas, cinco carimbadas. Ou um maço de continental sem filtro. Quem vai?
- Dou dez, cinco repetidas e meia carteira de LS. É pegar ou largar!
- Pego.
- Quanto quer pela cobra d’água e cinco lambaris?
- Um cruzeiro.
- Dou cinqüenta figurinhas, dois pares de borracha nova e dez tampas de pepsi novinhas.-
- Vinte tampas, a cobra é fêmea.
- Tu não sabes se é fêmea, isso é bobagem.
- Sei sim.
- Como tu sabes?
- A primeira coisa que fez quando eu tirei da rede foi se enroscar no meu pulso. Se fosse macho tinha tentado me picar.
(...)Chove! O córrego não comporta a limpidez da água de antanho. Os bichos morreram envenenados. Eu perdi minha inocência a tal ponto de não saber mais distinguir as cobras macho das fêmeas sem lhes pedir a carteira de identidade. Mas, enfim chove meu amigo e eu guardo cá infinitas saudades de ti.
(Texto publicado originalmente no jornal VAIA - Setembro de 2006)

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