Casa d'Aldeia é a casa original, a mais antiga habitação de minha cidade natal Cachoeira do Sul. Habitação, que, igual a cidade, apesar de tantos golpes de vento e borrascas sazonais teima em manter ao menos duas paredes de pé. Casa d'Aldeia é a minha casa. Seja bem vindo a ela!
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10 de jan. de 2009

O Dragão do Mar e o Continente de São Pedro






Faz frio cá na província de São Pedro. Lugar onde o caudilhismo recalcitrante, de mãos dadas com os ideais positivistas, e, investido de um falso liberalismo, fina camada de verniz sobre um fundo ultra-conservador, exerce, desde antanho todas as formas conhecidas de comportamento hipócrita. Essa mistura nada salutar de tendências sócio-políticas concorreu para o atraso da marcha social, contrariando desde sempre uma das máximas de Augusto Comte, criador da doutrina Positivista: O Progresso.
Sob regência dessas e de outras tantas contradições a sociedade riograndense fechou-se para qualquer tentativa de integrar as populações por ela segregadas ao longo de sua história – leia-se por isto: Pretos, mestiços e brancos pobres.
Mesmo quando cedo estabeleceu-se uma relação oficiosa entre as camadas mais privilegiadas economicamente e as populações periféricas, tendo como ponto de contato a tradição religiosa afro-brasileira, tal ligação não demandou um processo nem ao menos parcial de inclusão.
Se os brancos aquinhoados podiam acorrer aos terreiros de Nação, buscando no misticismo pagão, muitíssimo mais condescendente nos julgamentos morais que a tradição judaico-cristã, a brandura e a tolerância não praticada pela igreja católica, o mesmo não acontecia com os afro-descendentes em relação à igreja. Aparentemente aceitos dentro da instituição católica, os afro-descendentes jamais foram realmente incorporados a ela, tantos são os pontos de dissonância entre as culturas européia e africana.
O sincretismo, usado pelo negro como forma de obter permissão para cultuar seus deuses, em nenhum momento promoveu a conversão real do africano ao catolicismo. O fervor religioso cristão demonstrado hoje em dia por um sem número de afro-descendentes trata-se de fenômeno moderno. Mesmo que se possa pensar o contrário a partir dos relatos e da devoção dos pretos a Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e outros santos católicos. Nada demove a idéia de que naquele instante da história essa fosse uma estratégia de sobrevivência cultural, necessária para a manutenção das tradições africanas em solo americano.
De modo geral, a sociedade riograndense guardou muita desconfiança a respeito dessa conversão dos negros e mestiços ao cristianismo. A mesma desconfiança não se deu em relação ao elemento indígena rapidamente aculturado. Submisso à catequese jesuíta e usado como massa de manobra pelos padres no episódio da guerra guaranítica, quando foram dizimados naquele que foi um conflito de interesses entre as coroas de Espanha e Portugal. Os que sobraram desse massacre abandonaram as tradições ancestrais em favor aos costumes e religião do branco opressor.
Todavia o afro-descendente não aderiu de forma maciça ao credo dos brancos. Nunca, mesmo após filiar-se à igreja católica romana, não abandonou as práticas animistas de seus ancestrais. Tampouco os brancos, ao longo do tempo, abriram mão de consultar os oráculos africanos.
Dentre os vários movimentos teológicos e políticos oriundos dentro do catolicismo somente a Teoria da Libertação representada pelo ex -sacerdote Leonardo Boff admite a idéia real de ecumenismo popular. Mesmo contando com a "vista grossa" da igreja quanto à dupla fidelidade religiosa, prática onipresente no Brasil, esse comportamento ainda constitui motivo de constrangimento. Ninguém o expõe abertamente. Sequer é discutido na cátedra teológica, nem tugido em segredo nos confessionários. Embora seja, como já disse, costume rotineiro entre todas as camadas das sociedades riograndense e brasileira. Prova de que não foi possível ao poder clerical evitar a miscigenação étnico-religiosa, ou qualquer espécie de indesejada contaminação cultural da cultura branca ocidental pela cultura africana. Miscigenação essa antes ensejada pelos clérigos no tempo da colonização, quando o português carente de mulher amancebava-se com as cunhãs da terra de partes tão "saradinhas" como descrevia Pero Vaz. Promovendo através desse concubinato semi-oficializado alianças importantes com os indígenas enquanto no balanço das redes ia gerando uma prole de mamelucos.
Todas as alianças entre brancos e índios foram cimentadas graças à importância que os indígenas atribuem ao parentesco. Para esta terra meridional, como de resto para todo Brasil, a mancebia oi o primeiro tratado de cooperação não escrito nem assinado. Um tipo de "puxirão" tupiniquim. Provado desvantajoso para o ameraba.
Um século mais tarde a etnia negra foi a bola da vez.
É fato que tanto brancos donos de escravos quanto seus cupinchas derribavam as negras para obter, muita vez à força, seus quelés. Todavia, não me parece improvável o advento, aqui e acolá, dum moleque tisnado parido por uma sinhazinha. Já cantava o inesquecível Grande Otelo no samba Boneca de Piche de Ary Barroso: "...Já vi muito branco/com pinta na testa//"
Contudo, em tempos passados o menor traço de negritude negava ao homem direitos e prerrogativas, comuns mesmo aos mestiços de brancos e índios. Na escala da pirâmide social riograndense, verifica-se que até as décadas de quarenta e cinquenta do século vinte o negro ocupou as camadas mais baixas da sociedade. Sempre considerado um pária, cercado pelo preconceito e por enxovias de toda ordem.
Contribuiu para essa segregação o medo acalentado pelo branco, quando ao comparar-se ao negro avaliou que esse era mais capaz fisicamente. Além disso, a absoluta impossibilidade de compreensão por parte dos brancos da cosmogonia e teosebia africanas na qual não há temor ao sagrado, senão respeito. Como bem observou o sociólogo Darcy Ribeiro os deuses do panteão africano, diferente dos santos católicos, são sensuais e fazem sexo. E tal fato não pode ser tolerado pela moral católica. Quanto aos sacrifícios rituais de animais tão comuns às práticas animistas afro-brasileiras, não podemos esquecer que tais procedimentos ritualísticos são encontrados nas religiões derivadas do judaísmo (a religião cristã e o islamismo) com características messiânicas. Entre judeus, cristãos primitivos e até hoje no islã o ato de imolar animais em sacrifícios seja por expiação da culpa ou para obter favor divino é prática corrente e aceita.
[...] Desde o desterro da África para a América as tentativas no sentido de minorar as mazelas decorrentes do preconceito racial, como recentemente a lei Afonso Arinos, na prática tem pouco efeito. A atual lei que prevê reserva de cotas para negros nas universidades públicas gerou certa polêmica dentro e fora dos quadros acadêmicos. Os contrários à lei refutam dizendo que o mérito deve ser o único instrumento de avaliação dos candidatos. Essa lei deixa patente a tentativa da sociedade de tentar remediar a baixa oferta de ensino historicamente destinada ás populações em situação de vulnerabilidade social. Oferta essa deficiente no quesito qualidade.
A reserva de cotas para afro-descendentes (e aí pode-se incluir 70% da população brasileira) trata-se de um de tantos paliativos, que, se amenizam o problema do acesso dos negros e descendentes ao ensino superior, não combatem a causa da baixa taxa de ingresso deles nas universidades.
A sociedade brasileira continua explorando de forma bastante lucrativa e intensa a mais valia da mão de obra afro-descendente. Beneficiando-se e se servindo do que podem ofertar em matéria de cultura e arte. Assim manobrou a sociedade para cimentar a lucrativa indústria do carnaval. Carnaval esse nascido nos antigos cordões de Cucumbis e Ranchos Carnavalescos que desfilavam nas ruas do Rio de Janeiro até início do século XX.
Porém, a mesma sociedade que de forma despudorada se apropria do cabedal imenso da cultura africana (que em solo americano se transforma em cultura afro-americana) faz isso diluindo-o, abastardando sua fonte matriz, tornando-o mais empobrecido no intuito de adequar a linguagem para facilitar o comércio. Fazendo negar a esta etnia a correta narração da sua história. Distorcida sob a lógica canhestra de que a verdade só pode ser contada conforme a ótica do vencedor.
Mas, de alguma forma, por obra da sua tradição religiosa e de um sentido desenvolvido de comunidade os afro-descendentes conseguiram preservar suas tradições. Sob a primazia das culturas Yorubá e Nagô aconteceu o milagre da sobrevivência da identidade multicultural africana em solo brasileiro, tornada, sob a égide do português aos poucos em cultura legítima afro-brasileira e depois brasileira somente. Tal e qual qualquer outra cultura vigente em solo brasileiro fosse indígena ou européia. A língua (e dialetos) dos afro-descendentes, costumes, narrativa, mítica, indumentária, culinária e música sobreviveram e influenciaram profundamente o modo de vida da sociedade riograndense e brasileira.
[...] Na falta de um Malcom "X": Saponáceo. Na inexistência de um Martin Luther King Jr. (os shows da fé - jamais preocupados em politizar seus fiéis, só arrecadar dinheiro).
Os afro-descendentes brasileiros buscaram em Zumbi dos Palmares uma referência – ainda que não tão recomendável como modelo de caráter para personificar o ideal de heroísmo e resistência à opressão; (segundo algumas fontes Zumbi teria envenenado seu antecessor, chefe do Quilombo dos Palmares, Ganga Zumba).
Nós riograndenses temos pouca memória de um homem negro de tal vulto. Mas o tivemos na figura de João Cândido. Esse um nosso "Almirante Negro".
Nascido na cidade de Encruzilhada do Sul, feito marinheiro no Rio de Janeiro, o altivo João Cândido tornou-se figura emblemática ao liderar em 1910 o episódio conhecido como A Revolta da Chibata. Levante deflagrado entre as tripulações a bordo de navios de guerra da esquadra brasileira, seu objetivo principal era fazer cessar a prática do açoite contra os marinheiros da armada.
Entretanto, mesmo tendo nascido aqui, distante apenas algumas dezenas de milhas da minha terra natal, por muito tempo João Cândido foi desconhecido para mim. Para que eu tomasse ciência desse bravo se fez necessária a intervenção providencial e criativa de um poeta carioca. Foi através dos versos geniais de Aldir Blanc e da música contagiante de João Bosco, que eu, então meninote despertei primeiro para a beleza da obra, a música o Mestre Sala dos Mares, e depois para querer saber de que tratava. Quem era o tal Almirante Negro – Dragão do Mar – Feiticeiro, presente naquele samba magistral.
Hoje tanto tempo depois, após tornar-me um compositor fundamentado e preocupado com os temas vários deste Brasil, sinto-me no dever de dar voz àqueles que como João Cândido são parte de uma história pouco difundida e mal contada.
Talvez minhas personagens: Dirceu, Tio Isaías, Tia França, Caruncho, Bárbara e tantos mais, não sejam ilustres como Zumbi e João Cândido. Foram gente anônima. Mas para mim, tê-los conhecido, ainda que alguns apenas de livros ou da boca de outros, não tem preço. E, se porventura quando assuntar por aí descobrir que minha música despertou semelhante interesse em algum jovem artista, então terei realizado meu propósito de vida.